23 de março de 2011

(...) 7

Ahhh... Socorro! Ajudem-...me. Balbuciava o polícia enquanto uma espécie de mão humana lhe entrou pelas goelas até o deixar caído no chão. Desfalecido. A chuva parou. O céu transformou-se num azul impetuoso, o sol rompeu pelos campos, os dedos desapareceram, os bocados de carne deixaram-se cair, extintos, envoltos em ligeiros tremores. Morreram. Jul, o cão e o polícia, embebidos em sangue e lama, começaram a acordar de um sono profundo, uma amnésia rompante, o canastro começa a recuperar forças, Jul que fazes aqui? Que fazemos aqui? – Não sabe? Como é que não sabe se foi o senhor quem me trouxe aqui? Não, não sei. Bem, vamos voltar à aldeia. A caminho da aldeia na imprecisão do que os levou ao campo, o polícia começa a coçar-se, depois com mais força, mais ainda, a coçar o corpo todo, O que se passa comigo? Será que foi algum bicho que me mordeu?
Chegados à aldeia, então chefe o que se passava com Johnson? Johnson? O que é que tem Johnson? – Enquanto se coça desenfreadamente. Chefe, foi aos campos a pedido do maluco que lhe dissera que Johnson estava caído no chão, onde é que ele está? – Enquanto abre as portas do jipe. Jisp atira-se a ele em tom de folia, Jisp pára! – é sempre a mesma coisa com este cão. Johnson? Johnson!! O que é que aconteceu? – pergunta incrédulo. Como assim, do que é que estás a falar? O polícia leva a mão ao coldre – quietos! Ninguém se mexe! Estão detidos até eu saber o que se passa! O que pensas que estás a fazer? Avança em direcção à arma, Deitou! No chão! No chão!!! – grita, enquanto o camarada e superior se aproxima, o que vais fazer? Vais disparar? Pois se vais é bom que o faças já! Quieto! Eu não quero disparar, quieto! Pois se não disparas para que me apontas essa arma? A arma baixou ligeiramente, vês, ias arruinar a tua vida para quê? – Ouve-se um disparo. Ensurdecedor. Ouve-se um barulho, ferro a cair no chão, era a arma que ainda agora estava em mira, Johnson! O polícia deixa-se cair para o chão. Johnson, o que fizeste? O que tu já devias ter feito – responde num tom arrogante enquanto sai do jipe, enlameado, de olhar frio mas, ao mesmo tempo, trémulo.

5 de janeiro de 2011

(...) 6

Mas na realidade, se é coisa que ele não estava era sozinho.
A montante do velho campo de futebol, o vento teimava em soprar e orquestrava uma lutuosa melodia que, em conjunto com a negrura da noite, a gélida chuva e a barrenta lama cor de sangue, transformava o ambiente em algo fúnebre com um leve cheiro agre a morte.
Ao alto, o polícia olhava aquele pequeno espaço rubro e lodoso onde Jul fora engolido pela terra. Estava estático, a água da chuva precipitava-se na sua cara ensopando a farda e entranhando-se no seu corpo já por si frígido de medo. As suas botas, outrora sempre luzidias ao estilo marcial, estavam agora parcialmente enterradas e envoltas numa papa argilosa que o agrilhoava à terra.
Ensaiou um olhar em redor como quem pretende atestar a segurança do perímetro mas apenas conseguiu rodar o tronco alguns graus até perceber que os membros inferiores não obedeciam. Olhou em frente, apesar da penumbra da noite conseguiu vislumbrar que o chão, a escassos metros de si, ganhava nova vida.
Os dedos, que Jul – o louco relatara, tinham agora apensado os respectivos carpos e metacarpos formando mãos que tacteavam a lama em busca de um ponto sólido de apoio para poder elevar, quiçá, todo o resto de um corpo.

26 de novembro de 2010

(...) 5

Venham, venham depressa! - Jul, o louco da pequena cidade, apresenta-se na rua principal entre gritos e palavras descoordenadas que rapidamente colocam a pequena população em alvoroço. A chuva cai afincadamente enquanto as portas batem, pessoas nas janelas, alguns curiosos que se ficam pela interrogação popular, ao olharem uns para os outros como que a transmitir o que já todos sabem: é doido.
Jul grita insistentemente, Venham, venham, são dedos de pessoas! Crescem como plantas. Venham! O polícia da cidade, dos poucos que ainda mantém interesse pela profissão, sai do posto em direcção a Jul, agarra-o levemente pelo braço, Anda, sai da chuva e conta-me o que se passa. Não posso, não posso, têm que vir comigo. – Grita. Arrastado pela autoridade, Jul vê-se obrigado a ceder. Já abrigados, Jul visivelmente mais calmo, explica o que viu.
- O senhor tem que acreditar em mim. São dedos. Parecem dedos de pessoas que estão a crescer da terra. Mexem-se com o agitar do vento. O senhor tem que acreditar em mim, diz entre soluços.
- E onde é que fica essa “plantação de dedos”? – Graceja, olhando para o colega.
Vocês não acreditam em mim, mas vão ver quando lá chegarem. É no velho campo de futebol.
- Vamos ver o que se passa. Jonhson traz os cães.
A chuva teima em não parar, o jipe, velho, balbucia por entre pedras e lama.
É ali, é ali. – Diz.
De repente, a viatura para. Jonhson volta a ligá-la e comenta, eu bem lhe disse que precisamos de uma viatura nova. Tem razão Johnson, tem razão. Após várias insistências e fartos do barulho dos cães, decidem fazer os cem metros que se seguem a pé. A chuva insiste em cair, o vento agita-se, os campos revoltam-se.
Jisp volta. Jisp! Johnson desata a correr atrás de um dos cães que lhe foge em direcção ao campo. Desaparece. Anda cá, anda cá… Jisp é sugado por uns quantos dedos que parece terem vida própria. Desapareceu. Correm todos em direcção ao campo, perplexos. Param. Estáticos. Parece que viram um monstro. E viram, de facto. Dedos, uns pequenos, outros grandes, outros médios, mindinhos, polegares, brancos, lavados, mexem-se como se quisessem sair. Eu disse-vos! Eu disse-vos! – Comenta Jul, enquanto cai no meio da lama. Gotas de sangue espirram toda a farda do polícia, já molhada. Morreu.
O polícia olha incrédulo, como se estivesse sozinho, morto.

9 de setembro de 2010

(...) 4

De uma forma instintiva, Smith agarra no braço de Jenny e puxa-a para o interior do gabinete do Chefe em busca de um sítio que lhes proporcionasse maior segurança. Fechou a porta e procurou em vão uma chave que firmasse a desejada obstrução à entrada do monstro, na ausência desta, reclinou uma velha cadeira de madeira de encontro à maçaneta da porta. Na outra divisão, na portada de madeira com acesso à escadaria principal, ouviam-se sons compassados mas impulsivos e de violento impacto, dando a adivinhar que esta poderia sucumbir a qualquer momento.
Os dois encarcerados exibiam uma expressão de pavor, aliada a uma sensação claustrofóbica, de alguém que vê o seu já pequeno espaço de manobra, a ser reduzido a uma ínfima área de pouco mais de 10m2.
Jenny debruçou-se no parapeito da única janela daquele espaço e observou as paredes exteriores em busca de alguma saída. Apesar da cor gradiente de final do crepúsculo conseguiu ver, a cerca de dois metros e meio de altura, a existência de um cabo de electricidade fixo à parede de pedra disposto paralelamente à torça da janela. Tentou chegar àquela linha-de-vida que os poderia salvar mas esta estava demasiado alta. Uma solução, matutou Jenny, seria retirar a cadeira que servira de tranca e usá-la como plataforma para se elevar até ao parapeito da janela, mas ainda assim havia o risco de não conseguir chegar ao referido cabo, brotando contudo a cerebral questão se, em caso de sucesso, ela possuiria a suficiente força braçal para se suster e deslocar horizontalmente até ao peitoril do vão seguinte.
Entretanto Smith, que deambulava de um lado para o outro no cubículo-prisão, compeliu a pequena secretária de madeira que ali jazia sem dono, de encontro à porta. Supostamente, o peso superior deste denso objecto relativamente ao da cadeira, talvez resistisse melhor aos possíveis impactos da besta que, segundo ele, não tardaria a chegar. Tal acto gerou uma pequena divergência de ideias entre os dois aprisionados. Para Jenny, que ainda retinha alguns (poucos) ensinamentos da disciplina de física, a cadeira, ao exercer uma força transversa mas centralizada na maçaneta da porta, era o objecto de maior confiança para o efeito, já a secretária, apesar de mais pesada, seria facilmente arrastada permitindo assim que o malévolo ser forçasse a entrada naquele espaço.
Entretanto o tétrico cenário adensou-se quando, os dois náufragos daquela ilha horrenda ouviram uma significativa mudança tonal das investidas provocadas pelas manápulas da amaldiçoada criatura.
(...)

27 de setembro de 2009

(...) Parte 3


Caso a presente situação de não houvesse surgido, Jenny estaria provavelmente, neste momento na sala do seu pequeno T2 a ter, como era hábito, mais uma longa conversa com Miss Parker. Já era uma espécie de rito, após o leve jantar, Jenny deleitava-se no sofá e expelia as suas vivências diárias. Tal como uma paciente deitada na chaise long de um qualquer consultório de um psicólogo, ela expunha a nu todas as suas mágoas e coléricos receios de um dia voltar a sofrer. Miss Parker dava bons conselhos mas, principalmente, era das poucas pessoas que a sabia ouvir.
Entretanto, enquanto Jenny, pensava no único elemento da sua pseudo-familia, começa a ouvir o som da correria do seu colega a descer as escadas.
Smith foi de encontro à velha porta de madeira que dava acesso ao seu local de labor. Irrompeu pela sala dentro numa agitação tal que fez estremecer a sua formosa colega. Esta, com voz trémula mas ávida perguntou:
- O que se passou lá em cima? Diz-me, eu preciso saber.
Smith não deu resposta, a sua expressão facial, bastante empalidecida assemelhava-se à de um moribundo momentos antes da sua chama de vida expirar. Estava céptico em relação às experiências por que passara, não podia acreditar.
Bruscamente, irrompeu do meio da sala em direcção a uma escrivaninha que estava encostada à parede. A calha metálica em L sob o tampo folheado a carvalho, permitiu que este a agarrasse e, iniciando uma força de tracção em direcção à porta de entrada, arrastou-a transformando-a num obstáculo à passagem de quem quer que tentasse entrar naquele espaço.
Jenny, num acto de renitência cerrou os punhos insurgindo-se violentamente contra o seu colega de clausura insistindo para que ele descrevesse o que tinha visto. Este, em choque, apenas proferiu algumas parcas palavras:
- A Morte, eu vi a Morte… era ela, sem dúvida que era.
E dito isto deslocou-se vagarosamente em direcção ao canto mais distante da sala, encostou as suas costas à parede e deixou-se deslizar até ao chão, ajeitou o seu corpo e ficou uns momentos na posição fetal, ocultando de Jenny os fluidos salgados que irrompiam dos seus olhos.
Jenny, desistindo de obter as informações desejadas, deslocou-se a uma das janelas que estava aberta gritando em alta voz na direcção dos agentes que continuavam plantados lá em baixo na entrada do prédio:
- Por favor… ajudem-nos, destranquem as portas, deixem-nos sair…
As suas palavras revelaram-se infrutuosas, da rua nem um único olhar se levantou. Jenny desatou num pranto de verdadeiras lágrimas provindas do cerne do seu peito, do âmago da sua alma.
Passado algum tempo, Smith olhou de soslaio para Jenny, sentiu-se na obrigação de se erguer do seu canto. Dirigiu-se a ela com o intuito de a acalmar. Passou-lhe as mãos pelos negros e sedosos cabelos, olhou-a nos olhos e beijou-lhe a fronte depois uma das faces e por fim os seus lábios tocaram-se ao de leve. Smith sentiu o gosto das lágrimas da sua pele sem no entanto conseguir perceber a qual dos dois pertenceria aquele sabor a sal. Por fim, aquele momento brando com sabor a pouco, terminou com um abraço e este alentou-lhe ao ouvido num leve murmúrio:
- Tem calma, isto não há-de ser o fim, havemos de conseguir sair deste inferno.
Jenny ficou surpresa com aquele acto de Smith mas não o repeliu. As experiências presentemente vividas, levaram-na a sentir a carência de alguma ternura para contrabalançar com os momentos de terror e talvez a falta de Miss Parker. Afinal tudo na vida requer um equilíbrio e ela até nem tinha desgostado daquele beijo.
Junto à janela aberta o casal assistia à morte do dia e ao consequente cair da noite. O ocaso preocupava os dois sobreviventes, o que será deles ali aprisionados durante toda a noite?
E a fome? Até agora ainda não haviam conseguido parar para pensar nessa necessidade essencial a qualquer humano.
Smith sabia que o seu chefe guardava habitualmente na sua secretária algo que se pudesse mastigar, fazia-o devido à enormidade de horas que passava diariamente sentado naquela secretária. Deslocou-se então ao cubículo do chefe em busca de algo que lhes saciasse o corpo e lhes acalmasse o espírito. Ao revistar a primeira gaveta da secretária reparou num pequeno canivete suíço o qual continha meia dúzia de lâminas e utensílios que, na situação em que se encontravam, lhes poderiam vir a ser de alguma utilidade, pegou nele e meteu-o num dos bolsos. Na segunda gaveta um amontoado de documentos, daqueles que fazemos questão em guardar porque um dia nos poderão vir a ser de alguma utilidade mas que, na realidade, talvez nunca o sejam. Por fim, na terceira e última gaveta, encontrou um pacote de bolachas já encetado. Pegou nelas e dirigiu-se à divisão onde estava Jenny partilhando a comida. Aquilo não era nenhum manjar dos Deuses mas, com a fome que estavam, sabia como tal.
Smith, mastigando algumas bolachas, examinava pela janela o aparato policial lá em baixo e ao mesmo tempo esforçava o cérebro em busca de uma solução que os retirasse daquele amaldiçoado covil. De repente, ao voltar levemente a cabeça para a sua direita e enquanto levava mais uma bolacha à boca, os seus olhos pararam num determinado ponto, o movimento da sua mão direita também congelou momentos antes de atafulhar a sua boca com o mísero alimento.
Smith focalizara o terraço do prédio vizinho, o qual não distava mais que três metros do telhado do maldito edifício em que ele e a colega se encontravam. Talvez ali se encontrassem as respostas às suas preces. Se chegassem ao sótão talvez conseguissem um acesso ao telhado e daí a tentativa de dar o salto para a tão desejada liberdade.
Antes que Smith divulgasse a sua iluminada ideia a Jenny, o silêncio sepulcral que se sentia momentos antes, é repentinamente profanado por uns estranhos ruídos surgidos da velha escadaria. Ouviam-se pesados mas pausados passos, não era um som sólido o que colidia com a velha madeira, parecia que algo ou alguém bastante pesado descia a escadaria e talvez os supostos pés estivessem nus, emitindo aquele som denso que cada vez mais se lhes entranhava na alma.

(...)

18 de setembro de 2009

...

Enquanto Smith deambulava pelas escadas, atordoado com tão caótico cenário, Jenny a secretária, permanecia sentada na cadeira do seu Chefe. De pernas cruzadas, apoiando levemente o queixo sobre a sua mão, de pele macia e dedos longos, tentava ser racional quanto ao sucedido. Preocupava-a não o turbilhão de acontecimentos mas a quarentena em si. Jenny passara uma infância apavorante. Orfã de pai e mãe, nunca conhecera qualquer família, à excepção das funcionárias da instituição onde permanecera até atingir a maioridade. De todas elas, a que mais gostava era a Miss Parker, senhora dotada de uma inteligência superior que lhe transmitia a sua sabedoria não apenas através das suas palavras, mas também dos muitos livros que lhe oferecera ao longo dos anos. Sempre a viu como uma mãe que nunca tivera. Jenny não era um ser sociável. Ainda hoje possui marcas intermináveis no seu corpo da violência que as pessoas da instituição a fizeram sentir. Por isso, formulou uma opinião das pessoas em si não tão positiva quanto desejaria. Miss Parker era a única que sempre a tratara como uma menina que era e, daí, a sua preocupação com a quarentena. Miss Parker é, agora, uma senhora com alguma idade, por quem Jenny é responsável.

6 de agosto de 2009

(Início da Praga ... Parte I )

Smith havia chegado atrasado ao trabalho. Assim que pisou o níveo hall de entrada que dava acesso ao escritório sentiu um calafrio a invadir-lhe o corpo, mas reagiu como se de nada se tratasse, pura e simplesmente ignorou os sintomas daquele que seria um dia diferente e, subindo a escadaria até ao 1º andar, abriu a porta do escritório deslocando-se para o seu habitual poiso junto à secretária. Retirou um amontoado de papéis que repousavam desde o dia anterior na segunda gaveta, pegou neles e colocou-os à sua frente iniciando assim o seu ordinário rito laboral.
Smith era uma pessoa controlada e que se alheava das situações que não diziam directamente respeito ao exercer das suas funções. Era considerado pelos seus colegas como um “Workaholic” mas nesse dia, talvez por prognosticar que algo seria diferente, precipitou o olhar para o interior do gabinete do chefe e notou com admiração a sua ausência.
Em vários anos de servidão o chefe só tinha faltado um dia ao trabalho com a justificação mais que plausível de acompanhar a sua única filha ao altar.
Smith olhou em redor verificando que apesar das ausências, o habitual ambiente cinzento estava hoje ainda mais carregado, algo de estranho se passava.
No diminuto habitáculo a que chamavam “escritório” coabitavam diariamente, em horário laboral quatro únicas almas, hoje apenas metade ali se encontravam.
A escultural morena de olhos verdes que secretariava o chefe dirigiu-se a Smith num acto raro com o intuito único de obter informações acerca daquele estranho dia. Cumprimentaram-se e Smith questionou-a relativamente à ausência dos restantes, a jovem diz não saber o que se passava com Jonas mas afirmou ter visto o chefe na noite anterior quando saiu do “Scotch”, o seu habitual ponto de encontro com os amigos. Continuou replicando que este estava muito estranho possuindo uma invulgar palidez no rosto e que se deslocava como se estivesse a arrastar, ainda lhe tinha falado mas o arrependimento por tal acto foi instantâneo, pois este não respondeu ao chamamento e ainda lhe lançou um olhar aterrador como que desprovido de qualquer alma. Smith mencionou em auxílio do chefe que talvez este estivesse indisposto ou não a tivesse reconhecido.
Entretanto o diálogo foi quebrado por um estridente ruído vindo do exterior, era o som característico de um violento embate entre duas viaturas. Primeiro a sonância metálica da chapa batida, seguida de imediato pelo ressoar do quebrar dos vidros.
Smith e a secretária do chefe aproximaram-se rapidamente da pequena janela virada para a rua principal numa tentativa de vislumbrar o sucedido.
Um dos condutores teria sido cuspido da viatura trespassando o pára-brisas, e o seu corpo jazia agora no asfalto, aquela criatura houvera caído de costas ficando o seu rosto, repleto de pequenos cortes e coberto de sangue, virado para cima. O branco dos seus olhos reluzia em direcção aos dois “voyeurs” na janela.
A secretária do chefe agarrou-se a Smith numa tentativa vã de que este a protegesse daquele horripilante e anómalo vislumbre, só alguns momentos depois ela percebeu que aquele corpo inactivo pertencia a Jonas o seu colega da contabilidade, escusado será dizer que o verdadeiro choque surgiu após o reconhecimento do colega.
No meio daquela horrenda azáfama, as atenções viraram-se para o outro condutor que, pelas próprias mãos, conseguiu sair da viatura meio a cambalear e dirigiu-se para o hall de entrada do prédio.
Smith e a secretária desceram precipitadamente a velha escadaria com a intenção de se dirigirem ao padecente acidentado. Suspenderam entretanto o apressado andamento quando se encontravam a meio das escadas, o ar gélido da vítima que se encontrava erecto bem no centro do hall tinha-os surpreendido. Nunca, até então, tinham visto uma expressão semelhante. O desgraçado esvaía-se em sangue formando em seu redor um circulo quase perfeito de um vermelho vivo no entanto, da sua boca não surgia um único gemido e os seus olhos não demonstravam qualquer dor.
A cena surpreenderia qualquer ser humano normal, mas não a estranha e obesa “velhota dos gatos” (era referenciada assim por Smith e pelos seus colegas pois, as poucas vezes em que esta saia à rua, era sempre acompanhada pelos seus dois gatos), a senhora morava no 2º Andar por cima do escritório e também se apercebera do sucedido. Acorrendo em auxilio desceu desenfreadamente a escadaria quase atropelando Smith e a colega. A “velhota” dirigiu-se ao ser amorfo sem qualquer melindre e, entoando um qualquer som de complacência, amparou e ajudou o desgraçado e desfigurado condutor a subir as escadas até ao seu apartamento.
– Venha comigo, vamos limpar esse sangue e colocar uma compressa na ferida enquanto a ambulância não chega (dizia a velha Senhora).
Smith e a secretária do chefe comprimiram-se contra a parede para darem passagem aos dois e este ainda perguntou se queria ajuda, mas a resposta foi dada negativamente com a cabeça e dirigiram-se ao apartamento no 2º andar.
Smith e a Secretária refugiaram-se no escritório e aguardaram que a ambulância chegasse. Passados alguns 20 minutos ouviram ao longe as sirenes e pensaram que a ambulância já estava a chegar …. Mas enganaram-se, em vez do esperado meio de socorro surgiram 3 viaturas da polícia que de imediato cercaram o edifício. Com um megafone, um dos agentes da autoridade pedia aos moradores e restantes ocupantes para manterem a calma e colaborarem com as autoridades, o edifício estava de quarentena.
Numa tentativa de obter mais informações, Smith pegou no telemóvel e ligou para a esquadra de policia mais próxima, ao questioná-los sobre o sucedido a voz do outro lado recomendou-lhe muita calma e que se fechasse isoladamente numa divisão do prédio pois o condutor acidentado era suspeito de ter injectado em si próprio um desconhecido vírus. Após a horrenda comunicação a chamada caiu não dando tempo para mais explicações.
Entretanto Smith e a colega, agora sentados em volta de uma pequena mesa redonda de madeira, dialogavam com seriedade em relação aos factos vividos no momento. Notava-se no franzir de testa de ambos um desassossego constante, uma sensação de asfixia misturada com alguma ansiedade. Eles teriam de engendrar um plano para sair dali, o aprisionamento de que foram alvo não fazia qualquer sentido tendo em conta que nem um, nem outro tiveram qualquer contacto físico com a vítima do acidente.
A jovem, numa lufada de alento que lhe surgiu não se sabe bem de onde, foi em direcção ao telefone fixo que estava no gabinete do chefe. Tinha que pedir ajuda a alguém do exterior, alguém que se movimentasse lá fora e que os ajudassem a sair da reclusão, mas mais esta acção se revelava infrutífera, ao colocar o auscultador no ouvido, em vez do habitual som característico do aparelho, apenas ouviu um profundo e indesejado silêncio. Ela, voltou então a sentar-se e dirigiu-se ao colega dizendo que alguma saída teria que existir …
De repente o diálogo dos dois foi interrompido por um gemido aberrante e aterrador, a origem do som levou ambos a desviarem o olhar para o tecto, depois veio o silêncio, este ainda mais gritante, ainda mais terrífico.
_ Só pode ser a “velhota dos gatos” – Exclamou a secretária do chefe.
Smith acenou com a cabeça em sinal de afirmação e, num acto valoroso, ergueu-se e caminhou em direcção à porta, notava-se na sua pessoa uma necessidade involuntária de perceber o que se passava no andar superior.
O corajoso senhor entreabriu a porta e observou de alto a baixo a velha escadaria de madeira, não havia nada de anormal que a sua vista pudesse alcançar a não ser a poça de sangue no hall de entrada, o “vermelho vivo” de antes, dava agora lugar a um vermelho ferroso e o cheiro a sangue era agora perceptível.
O silêncio era total e incomodativo.
Smith engoliu em seco mas a sua curiosidade era suprema relativamente ao seu temor, ele teria que subir ao andar superior para ver com os seus olhos o estado da detentora daquele terrível grito.
No interior do escritório, a rapariga que antes possuía um tom de pele rosado e saudável, apresentava agora uma tez pálida, qual cadáver saído da cripta. Aquele urro angustiante tinha chamado a jovem criatura à pura realidade em que se encontravam. A sua mente queria impedir que o colega se ausentasse daquele espaço, mas nem a sua boca nem qualquer parte do seu corpo obedecia às ordens do seu cérebro.
Entretanto, o heróico Smith já se encontrava no patamar da escadaria e dava início, com extrema cautela, ao galgar silencioso dos velhos degraus … fazia questão em não assentar a totalidade dos seus pés, de forma a evitar o mais possível, o ranger característico emanado pela velha madeira. Tal acção insurgiu-se em vão devido, muito provavelmente, aos sapatos nº 43 que calçava. O efeito surpresa tinha-se desvanecido e com ele a cautela de Smith, que agora subia com mais celeridade as escadas.
De frente ao apartamento da “velha do gatos” aferiu que a porta estava entreaberta, esgueirou o seu olhar para o interior e pôde verificar a existência de uma luz muito ténue ao fundo do compartimento por cima de um velho fogão. Entrou furtivamente e olhou em seu redor, para além de alguns tachos e panelas amontoados no lava-louça não se via nada de anormal. Pôde visionar através da penumbra uma pequena caixa deitada no chão e que esta possuía uma pequena cruz vermelha era a “farmácia” com que a velha senhora iria prestar os primeiros socorros ….
Continuou em direcção à outra divisão da casa, rodou a maçaneta da porta e concluiu ser o quarto. O seu coração quase explodiu, quando um dos felinos da velha senhora saiu disparado debaixo da cama passando por ele. Ao olhar na direcção tomada pelo animal, pode verificar que aquele tinha cruzado à direita na porta de saída dirigindo-se para a escadaria que dá acesso ao velho sótão. Neste momento interrogou-se acerca da localização da “velhota dos gatos” e do seu protegido condutor acidentado.
Teriam tomado a mesma direcção que o malfadado animal? Não… tal acto não parecia racional, o que pretenderiam eles o do sótão? Lá não existia nada de útil, só velhas quinquilharias deixadas ao abandono.
…Faltava por fim verificar o último compartimento, junto à porta podia-se ouvir o som ritmado de água a pingar de uma torneira, deveria ser a casa de banho.
Smith rodou ainda com mais cautela a maçaneta da porta pois, a haver algo de estranho nesta casa, teria de ser ali, a pequena luz ténue não atingia aquela parte da casa e, smith tacteou à procura do interruptor. O seu coração batia descompassadamente e parecia querer libertar-se do seu peito mas, já que tinha chegado aquele ponto, continuaria até ao fim. Encontrou finalmente o procurado apêndice da parede, com a certeza que este iria iluminar aquele espaço …mas não funcionava, a lâmpada deveria estar partida ou fundida. Ao dar mais um passo confirmou que estava mesmo partida, tinha acabado de pisar alguns pedaços de vidro … lembrou-se então que costumava trazer um velho isqueiro na algibeira (hábitos de um ex-fumador). Ao acender o isqueiro pôde observar que o chão estava molhado junto à banheira e esta estava tapada com uma brejeira cortina de plástico. Ao verificar uma divergente tonalidade na cor do chão entre a zona molhada e a seca, aproximou a luz provinda do isqueiro e confirmou com temor uma diluição de água com sangue, involuntariamente deu um passo atrás.
Smith estava inerte, o seu medo não o deixava mover-se. Por fim ordenou ao seu cérebro, que ordenasse ás suas pernas, que dessem um passo em frente e conseguiu a coragem extra para afastar a cortina.
Na banheira estava deitada a “velhota dos gatos”. O seu corpo semi-nu e sem vida, estava envolvido por água de uma coloração rosa. Os olhos da mulher-cadáver pareciam querer saltar das orbitas, eram brancos e vidrados. A sua enorme barriga apresentava estrias de uma cor roxa e emergia para fora de água como se de uma ilha se tratasse. Smith não conseguia aguentar mais daquela horrenda visão e saiu atemorizado. Atrás de si fechou a porta e ao parar por uns míseros segundos para tentar perceber o que estava a acontecer … ouviu um barulho de água a cair sobre água, era o som característico de um corpo a levantar-se da banheira.
Smith sentia a sua boca seca, as suas mãos suadas e o sangue latejava com força nas suas têmporas, nunca na sua vida tinha sentido tal pavor.
O arrojado e heróico senhor de antes, já não era agora assim tão corajoso e corria desalmadamente pela velha escadaria de madeira em direcção ao escritório.