27 de setembro de 2009

(...) Parte 3


Caso a presente situação de não houvesse surgido, Jenny estaria provavelmente, neste momento na sala do seu pequeno T2 a ter, como era hábito, mais uma longa conversa com Miss Parker. Já era uma espécie de rito, após o leve jantar, Jenny deleitava-se no sofá e expelia as suas vivências diárias. Tal como uma paciente deitada na chaise long de um qualquer consultório de um psicólogo, ela expunha a nu todas as suas mágoas e coléricos receios de um dia voltar a sofrer. Miss Parker dava bons conselhos mas, principalmente, era das poucas pessoas que a sabia ouvir.
Entretanto, enquanto Jenny, pensava no único elemento da sua pseudo-familia, começa a ouvir o som da correria do seu colega a descer as escadas.
Smith foi de encontro à velha porta de madeira que dava acesso ao seu local de labor. Irrompeu pela sala dentro numa agitação tal que fez estremecer a sua formosa colega. Esta, com voz trémula mas ávida perguntou:
- O que se passou lá em cima? Diz-me, eu preciso saber.
Smith não deu resposta, a sua expressão facial, bastante empalidecida assemelhava-se à de um moribundo momentos antes da sua chama de vida expirar. Estava céptico em relação às experiências por que passara, não podia acreditar.
Bruscamente, irrompeu do meio da sala em direcção a uma escrivaninha que estava encostada à parede. A calha metálica em L sob o tampo folheado a carvalho, permitiu que este a agarrasse e, iniciando uma força de tracção em direcção à porta de entrada, arrastou-a transformando-a num obstáculo à passagem de quem quer que tentasse entrar naquele espaço.
Jenny, num acto de renitência cerrou os punhos insurgindo-se violentamente contra o seu colega de clausura insistindo para que ele descrevesse o que tinha visto. Este, em choque, apenas proferiu algumas parcas palavras:
- A Morte, eu vi a Morte… era ela, sem dúvida que era.
E dito isto deslocou-se vagarosamente em direcção ao canto mais distante da sala, encostou as suas costas à parede e deixou-se deslizar até ao chão, ajeitou o seu corpo e ficou uns momentos na posição fetal, ocultando de Jenny os fluidos salgados que irrompiam dos seus olhos.
Jenny, desistindo de obter as informações desejadas, deslocou-se a uma das janelas que estava aberta gritando em alta voz na direcção dos agentes que continuavam plantados lá em baixo na entrada do prédio:
- Por favor… ajudem-nos, destranquem as portas, deixem-nos sair…
As suas palavras revelaram-se infrutuosas, da rua nem um único olhar se levantou. Jenny desatou num pranto de verdadeiras lágrimas provindas do cerne do seu peito, do âmago da sua alma.
Passado algum tempo, Smith olhou de soslaio para Jenny, sentiu-se na obrigação de se erguer do seu canto. Dirigiu-se a ela com o intuito de a acalmar. Passou-lhe as mãos pelos negros e sedosos cabelos, olhou-a nos olhos e beijou-lhe a fronte depois uma das faces e por fim os seus lábios tocaram-se ao de leve. Smith sentiu o gosto das lágrimas da sua pele sem no entanto conseguir perceber a qual dos dois pertenceria aquele sabor a sal. Por fim, aquele momento brando com sabor a pouco, terminou com um abraço e este alentou-lhe ao ouvido num leve murmúrio:
- Tem calma, isto não há-de ser o fim, havemos de conseguir sair deste inferno.
Jenny ficou surpresa com aquele acto de Smith mas não o repeliu. As experiências presentemente vividas, levaram-na a sentir a carência de alguma ternura para contrabalançar com os momentos de terror e talvez a falta de Miss Parker. Afinal tudo na vida requer um equilíbrio e ela até nem tinha desgostado daquele beijo.
Junto à janela aberta o casal assistia à morte do dia e ao consequente cair da noite. O ocaso preocupava os dois sobreviventes, o que será deles ali aprisionados durante toda a noite?
E a fome? Até agora ainda não haviam conseguido parar para pensar nessa necessidade essencial a qualquer humano.
Smith sabia que o seu chefe guardava habitualmente na sua secretária algo que se pudesse mastigar, fazia-o devido à enormidade de horas que passava diariamente sentado naquela secretária. Deslocou-se então ao cubículo do chefe em busca de algo que lhes saciasse o corpo e lhes acalmasse o espírito. Ao revistar a primeira gaveta da secretária reparou num pequeno canivete suíço o qual continha meia dúzia de lâminas e utensílios que, na situação em que se encontravam, lhes poderiam vir a ser de alguma utilidade, pegou nele e meteu-o num dos bolsos. Na segunda gaveta um amontoado de documentos, daqueles que fazemos questão em guardar porque um dia nos poderão vir a ser de alguma utilidade mas que, na realidade, talvez nunca o sejam. Por fim, na terceira e última gaveta, encontrou um pacote de bolachas já encetado. Pegou nelas e dirigiu-se à divisão onde estava Jenny partilhando a comida. Aquilo não era nenhum manjar dos Deuses mas, com a fome que estavam, sabia como tal.
Smith, mastigando algumas bolachas, examinava pela janela o aparato policial lá em baixo e ao mesmo tempo esforçava o cérebro em busca de uma solução que os retirasse daquele amaldiçoado covil. De repente, ao voltar levemente a cabeça para a sua direita e enquanto levava mais uma bolacha à boca, os seus olhos pararam num determinado ponto, o movimento da sua mão direita também congelou momentos antes de atafulhar a sua boca com o mísero alimento.
Smith focalizara o terraço do prédio vizinho, o qual não distava mais que três metros do telhado do maldito edifício em que ele e a colega se encontravam. Talvez ali se encontrassem as respostas às suas preces. Se chegassem ao sótão talvez conseguissem um acesso ao telhado e daí a tentativa de dar o salto para a tão desejada liberdade.
Antes que Smith divulgasse a sua iluminada ideia a Jenny, o silêncio sepulcral que se sentia momentos antes, é repentinamente profanado por uns estranhos ruídos surgidos da velha escadaria. Ouviam-se pesados mas pausados passos, não era um som sólido o que colidia com a velha madeira, parecia que algo ou alguém bastante pesado descia a escadaria e talvez os supostos pés estivessem nus, emitindo aquele som denso que cada vez mais se lhes entranhava na alma.

(...)

18 de setembro de 2009

...

Enquanto Smith deambulava pelas escadas, atordoado com tão caótico cenário, Jenny a secretária, permanecia sentada na cadeira do seu Chefe. De pernas cruzadas, apoiando levemente o queixo sobre a sua mão, de pele macia e dedos longos, tentava ser racional quanto ao sucedido. Preocupava-a não o turbilhão de acontecimentos mas a quarentena em si. Jenny passara uma infância apavorante. Orfã de pai e mãe, nunca conhecera qualquer família, à excepção das funcionárias da instituição onde permanecera até atingir a maioridade. De todas elas, a que mais gostava era a Miss Parker, senhora dotada de uma inteligência superior que lhe transmitia a sua sabedoria não apenas através das suas palavras, mas também dos muitos livros que lhe oferecera ao longo dos anos. Sempre a viu como uma mãe que nunca tivera. Jenny não era um ser sociável. Ainda hoje possui marcas intermináveis no seu corpo da violência que as pessoas da instituição a fizeram sentir. Por isso, formulou uma opinião das pessoas em si não tão positiva quanto desejaria. Miss Parker era a única que sempre a tratara como uma menina que era e, daí, a sua preocupação com a quarentena. Miss Parker é, agora, uma senhora com alguma idade, por quem Jenny é responsável.